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Últimos conselhos
Henrique Fleming - 2003

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Discurso como Paraninfo da turma 9 do Curso de Ciências Moleculares
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Caros amigos da Turma 9,

não há saída: uma rápida olhada à definição de paraninfo, no dicionário mais popular, não deixou escapatória: ``o paraninfo deve fazer um discurso". O que cria um problema por, pelo menos, duas razões. A primeira: um cálculo rápido mostra que, com 6 horas semanais, em dois semestres, sem contar o curso de Relatividade Geral, eu falei para vocês aproximadamente 200 horas! A segunda: a ciência, com a sua ``linguagem essencial" (as palavras são do grande escritor italiano Primo Levi, químico e literato, um bom modêlo para os egressos do nosso querido curso), é comumente vista como a alternativa ao discurso, como o método de pensar e de expressar pensamentos que substituiu a Escola, ou Escolástica, que era o estilo intelectual da Idade Média, e que sobrevive, vigoroso, em cerimônias como formaturas, batizados, casamentos e discursos do nosso atual Presidente.

Duzentas horas! O que poderia mais ser dito? Lembro-me de uma história contada por este grande trovador da física, Richard Feynman: seu filho, ainda menino, começou, um dia, a falar estranho: não dizia mais palavras que contivessem a letra ``i". Perguntaram o que havia, e ele respondeu: ``acabou o meu estoque deste som"!

Isto nos leva a uma questão profunda, que entrelaça ciência, linguagem, e mais um mundo de coisas. Há um elemento do infinito, na língua: as letras, ou os fonemas associados a elas, são em quantidade infinita, porque criados no ato. Como a criação, na nossa cultura é um atributo divino (Deus tem o codinome de Criador), justificam-se, culturalmente, os cuidados do jovem Feynman.

Acredito que grande parte da idolatria a Lavoisier se deva a ele ter dado base científica à divindade da criação, com a sua famosa frase ``Na natureza nada se cria, nada se perde". A força desta idéia é enorme: quando Dirac e Fermi apresentaram suas teorias, respectivamente, da eletrodinâmica quântica e do decaimento beta, houve grande resistência entre os próprios físicos à idéia de que o fóton fosse criado no processo, e não pré-existisse, armazenado no átomo; e de que um elétron, isto é, até mesmo matéria, fosse criado no ato do decaimento no neutron, e não pré-existisse, armazenado nele. Na natureza, em outras palavras, cria-se e destrói-se, embora, é verdade, não se perca nada. O próprio Feynman conta, em outra ocasião, que jamais conseguiu explicar ao pai, homem de extraordinária inteligência, que o fóton podia ser criado, que não existia um estoque de fótons.

Então, apesar de já ter falado a vocês por duzentas horas, pelo menos não corro o perigo de emudecer subitamente por falta de sons. Porque, na realidade, há algumas coisas que eu quero falar a vocês, e esta é uma boa ocasião.

Todos vocês serão educadores, queiram ou não. Num país onde a educação vai tão mal, onde se verifica com toda a sua brutalidade a frase de Bertand Russell, ``O homem nasce ignorante, não estúpido; o que o torna estúpido é a educação", todos os que sobreviveram ao processo são educadores, e cada triunfo individual, cada ``paper" publicado ``lá fora", como se diz, é uma demonstração de que não somos, necessariamente, imbecis. Então vamos falar de educação, agora num sentido mais estrito.

``Exceto pela ciência, tudo o que pode ser dito já o foi, e melhor, pelos gregos", dizia Augusto Guerriero, grande diplomata e jornalista italiano. Então, vamos à fonte.

Durante muito tempo, séculos, na Grécia, a educação consistia, essencialmente, no estudo de Homero, e, em particular, a Ilíada. O que se podia pretender com isso? Pretendia-se, creio eu, dar predominância à ética, à responsabilidade individual (a Ilíada se detém apenas em combates individuais), ao comportamento correto em situações de crise. Formava-se a estrutura do homem. O aprendizado das profissões era outra coisa, e não era considerado educação.

Aristóteles foi, junto com os grandes líderes religiosos, um dos homens mais influentes da história. Sobre a educação, pronunciou uma frase imortal:``As raízes da educação são amargas, mas o fruto é muito doce".

Estes dois grandes fundamentos da educação estão em risco de extinção em nosso pobre país. Hoje se vêem, como relatado em reportagem recente de um semanário, escolas de crianças modeladas no funcionamento de uma empresa, onde as crianças aprendem a ``ir ao banco", ``preencher cheques", ``lidar com cartões de crédito". E aprendem que permanecer muito tempo num emprego é sinal de fraqueza, e o que interessa, usando agora nossa linguagem especializada, não é a função, mas a sua derivada. E a habilidade necessária não é memorizar, mas esquecer.

Como se não bastasse, o coletivo é incentivado em detrimento do individual, o que, para a ciência, é nefasto: a descoberta científica é individual, mesmo nos trabalhos de equipe. O súbito reordenamento do cáos à luz, que constitui a maior parte das descobertas, ocorre dentro de uma cabeça, às vezes tão dentro que nem o dono da cabeça se sente verdadeiramente proprietário da descoberta: um sopro divino descreveria melhor o acontecimento.

O ensinamento de Aristóteles, por sua vez, é violentado em nome da idéia de ``aprender brincando", baseado no ``sólido princípio" de que as crianças, soltas, brincam, em vez de estudar. As raízes da educação são amargas: é na educação que se aprende a necessidade, freqüente, de perder para ganhar mais (formalizada recentemente por John Forbes Nash, no famoso equilíbrio de Nash) e, sobretudo, que os proventos do estudo são aditivos, senão exponenciais. Doce é o fruto.

E, finalmente, princípio básico, absolutamente essencial nesta civilização presidida pelo efêmero, pela moda, ainda numa frase lapidar, que aprendi de Mario Bunge: ``Procure pensar por conta própria. Seu custo será fazê-lo. Seu prêmio será tê-lo feito". Se eu precisasse resumir em uma frase o que se deseja obter com a educação, a frase seria esta.

Caros amigos, uma formatura é também uma despedida. Após os conselhos, chega a hora da separação. A metáfora da despedida é o embarque, e ninguém melhor do que Ezra Pound o descreveu, no início de seus "Cantos", sua versão da Odisséia:

E descemos então para o navio, e
Quilha contra as ondas, rumo ao mar divino, içamos
Mastro e vela sobre a nave negra,
Ovelhas a bordo, e também os nossos corpos
Pesados de pranto, e os ventos de popa
Nos lançaram ao largo, as velas infladas...

Bons ventos os levem!!!




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Henrique Fleming 2004-01-26